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id da página: 7867 Agostinho Sermão 227 Domingo de Páscoa Agostinho

Agostinho Sermão 227 Domingo de Páscoa

Agostinho de Hipona — DOMINGO DE PÁSCOA

Tradução do latim do Padre António Fazenda

Não me esqueci da minha promessa. Pois tinha prometido aos que vós batizastes uma prática em que vos expusesse o sacramento1 da mesa do Senhor, que vós ainda agora estais vendo e no qual a noite passada tomastes parte. Deveis saber o que recebestes, o que haveis de receber, o que conviria recebêsseis cada dia2 .

Aquele pão que vedes no altar, consagrado pela palavra de Deus, é o corpo de Cristo. Aquele cálice, melhor, o que está dentro daquele cálice, consagrado pela palavra de Deus, é o sangue de Cristo. Por eles nos quis o Senhor Jesus Cristo entregar o seu corpo e o seu sangue que por nós derramou para remissão dos nossos pecados.

Se os recebestes com as devidas disposições, vós sois o que vós recebestes. Realmente o Apóstolo diz: Embora sejamos muitos, somos contudo um só pão e um só corpo (1 Cor 10, 17). Assim é que ele explica o sacramento da mesa do Senhor: Somos muitos, mas somos um só pão e um só corpo. Com este pão se vos mostra quanto deveis prezar e amar a unidade. Porventura aquele pão foi feito de um só grão? Não eram muitos os grãos de trigo? Mas antes de chegarem a pão, estavam separados. Foram unidos pela água, mas depois de esmagados. Se o trigo não for moído e amassado com água, é impossível que chegue a ser o que se chama pão.

Ora convosco passou-se coisa parecida. Primeiro, à semelhança de mó, rodou sobre vós a humilhação do jejum e o sacramento do exorcismo. Veio o batismo e como que fostes amassados com água para chegardes a esta forma de pão. Mas sem fogo não se coze o pão. Que significa portanto o fogo, isto é, a unção de azeite? Não há dúvida de que o azeite, como alimenta o fogo, é o sacramento do Espírito Santo. Reparai no que se lê nos Atos dos Apóstolos, pois começa agora mesmo a ler-se esse livro: hoje principia a leitura do livro intitulado: Atos dos Apóstolos. Quem quer adiantar, tem com quê. Quando vindes à igreja acabai com a vaidade das vossas falas e prestai atenção às Escrituras. Os vossos livros somos nós. Atentos, pois; e vede o caminho por onde há-de vir no Pentecostes o Espírito Santo.

O modo como há-de vir (o Espírito Santo) é este: manifesta-se em línguas de fogo; Mete-nos dentro o espírito de caridade, para nos inflamarmos no amor de Deus, para desprezarmos as seduções do mundo, para queimarmos as ervas das nossas paixões, para purificarmos como ouro o nosso coração. Vem, pois, o Espírito Santo, depois da água o fogo, e tornais-vos naquele pão que é corpo de Cristo. E por este modo se significa de alguma forma a unidade.

Sabeis os mistérios pela ordem em que se seguem. Primeiro, depois da oração3 sois convidados a ter o coração no alto; é coisa que fica bem a membros de Cristo. Pois, se vos tornastes membros de Cristo, o que é vossa cabeça onde está? Os membros têm sua cabeça. Se o que é cabeça não tivesse ido adiante, os membros não podiam segui-lo. Para onde foi o que é vossa cabeça? Que recitastes no Símbolo? Ao terceiro dia ressuscitou dos mortos, subiu ao céu, está sentado à direita do Pai. Está, pois, no céu O que é nossa cabeça. Por isso, quando se diz «Coração ao alto!» respondeis «Já o temos no Senhor». E para que isso de ter o coração no Senhor o não atribuais às vossas forças, aos vossos merecimentos, aos vossos esforços, porque ter o coração no céu é um dom de Deus, por isso o bispo ou o presbítero que celebra, depois de o povo responder «Temos no Senhor o nosso coração bem elevado», continua «Demos graças ao Senhor nosso Deus», por termos o coração posto n'Ele. Demos-Lhe graças, porque se Ele não nos fizesse este dom, teríamos o coração na terra. E vós assim o atestais dizendo: É digno e justo que Lhe demos graças por nos fazer levantar o nosso coração para Aquele que é nossa cabeça.

Em seguida, depois da santificação do sacrifício de Deus, porque Deus quis que nós sejamos sacrifício seu — e isto fica manifesto logo que se põe sobre o altar o sacrifício de Deus —, porque, como esse sacrifício nos representa também a nós, lá estamos4 com Ele em cima do altar; logo, pois, que se terminou a santificação, rezamos a oração do Senhor, que já aprendestes e recitastes. Depois dela diz-se A paz seja convosco, e os cristãos beijam-se com ósculo santo. É o sinal da paz. O que os lábios mostram, deve-se fazer na consciência, isto é, assim como os teus lábios se aproximam dos lábios do teu irmão, assim se não afaste do coração dele o teu coração5 .

Grandes mistérios, pois, e muito grandes! Quereis saber em que condições nos são dados? Diz o Apóstolo: «Quem come o corpo de Cristo ou Lhe bebe indignamente o seu cálix, é réu do corpo e do sangue do Senhor» (1 Cor 11, 27). Receber indignamente que significa? Receber com desdém, receber com irrisão. Não O julgues vil por O veres. O que vês passa; mas o invisível, que é significado, não passa, permanece. Eis que Se recebe, Se come, Se consome. Destrói-se porventura o corpo de Cristo? Destrói-se porventura a Igreja de Cristo? Destroem--se porventura os membros de Cristo? Nunca! Aqui purificam-se, lá coroam-se. Permanecerá, pois, o que é significado, embora o que significa pareça passar.

Recebei-O, pois, de maneira que tireis proveito, que tenhais a unidade no vosso coração, que tenhais sempre fixo no alto o coração. Não ponhais na terra a vossa esperança, mas no céu; seja firme em Deus a vossa fé, seja aceite a Deus. Porque aquilo que agora, sem o verdes, credes, lá haveis de o ver e de o gozar sem fim.


Notas:

1 É a catequese tradicional sobre a eucaristia (cf. S 228, 3, a enumeração das catequeses de iniciação) que se fazia, em Hipona, no própria dia de Páscoa, durante a oblação, da que os «recém-nascidos», participavam pela segunda vez. Na pregação que não se destinava só aos fiéis fugia-se de aludir com precisão à eucaristia (cf. S 232, 7; 234, 2 ; 235, 3; S Mai. 86, 3; 132, 1; In Jo. Eu. 11. 3).
2 Era quotidiana, em Hipona, a celebração eucarística. Cf. MA, I p. 261, Unhas 3 e 21, e S 57, 7; 334, 3; etc. O mesmo em Milão, cf. Ambrósio, De Sacramentis V, 25: «Accipe quotidie quod quotidie tibi prosit» (Recebe cada dia o que cada dia te aproveite). O costume não era o mesmo em todas as igrejas. Cf. Agostinho, Epist. 54, 2.
3 Oração que se fazia a seguir à Liturgia da Palavra antes da despedida dos catecúmenos. Muitos sermões terminam por uma oração: com bastante frequência o taquígrafo contenta-se com notar: «Conversi ad Dominum, etc». (Voltados para o Senhor, etc.) Na carta 29, 7, conta Agostinho: «Dito isto, entreguei o livro e convidei para a oração (imperata oratione) ... Temos uma ressonância desta chamada à oração no S 232, 8: «Orate, paenitentes ... (Orai, penitentes), chamada feita desta vez aos penitentes — e em circunstância indeterminada.
4 Este texto difícil é ilustrado pelo De ãvitate Dei 10, 6: ... quo totum sacrificium ipsi nos sumus ... Hoc est sacrificium christianorum «multi unum corpus sumus in Christo». Quod etiam sacramento altaris fidelibus noto jrequentat ecclesia ubi ei demonstratur quod in ea re quam offert, ipsa offeratur (este sacrifício todo somos nós ... Este é o sacrifício dos cristãos «não obstante sermos muitos somos em Cristo um só corpo». É isto o que a Igreja celebra no sacramento do altar conhecido dos fiéis, onde se lhe patenteia que naquilo que oferece, ela se ofere).
5 A reza da oração do Senhor era acompanhada de dois gestos do celebrante e dos fiéis: batem no peito ao Dimitte no bis debita nostra (perdoai-nos as nossas dívidas; Cf. S 351, 6); e selam o Sicut et nos dimittimus (assim como nós perdoamos ...) com o ósculo da paz (Cf. Tertuliano, De oratione 18: osculum pacis quod est signaculum orationis (ósculo de paz que é selo da oração). Na língua dos cristãos petere aliquem ad pacern (buscar alguém para a paz) torna-se sinônimo de abraçar (Cf. Epist. 158, 10). Contudo o ósculo de paz toma sentido mais amplo, porque pax, na época de Agostinho, designa sobretudo a unidade da Igreja. No séc. IV o epitáfio fidelis in pace significa expressamente que o cristão baptizado morreu na comunhão da Igreja Católica. Por isso os Donatistas o substituíram por fidelis in fide Evangelii (Cf. Marec, Monuments chrétiens d'Hippone, Paris, 1958, p. 66, nota 2).